A língua falada em São Vicente – Sua riqueza e importância como língua autónoma em relação às demais ilhas


Abel Almada

Será que ela é interessante? A língua de São Vicente, assim como a de cada ilha de Cabo Verde, não deixa de ser um português “crioulizado”. Nela podemos constatar uma variedade de palavras ou
expressões provenientes de outros idiomas, nomeadamente alemão, inglês e francês, que, embora sejam
escritas diferentes de umas das outras, são pronunciadas da mesma forma, por vezes com o emprego do
mesmo sentido e fonético. Senão vejamos: “u’n caput” (eu não consegui). Em alemão: “und” = “e”;
“kaput” = “avariado, inoperante”. “a’ m bai” (eu já vou). Em inglês: “I’ m” = “eu”; “by” = “ir”. Outros
exemplos: “bô ê cul” (tu és legal). Em francês, beau (bô) significa belo/lindo e, em inglês, “cool” (cul),
frio/calmo/legal, e, por aí fora.

São interessantes as expressões acima mencionadas. Conforme podemos constatar, elas exprimem o
verdadeiro sentido das palavras. “u’n caput”, ou seja, “eu não consegui fazer algo por alguma razão”; a’
m bai”, o mesmo que “eu já vou” e “bô ê cul” que exprime a ideia de uma pessoa calma, tranquila, legal
ou gentil neste caso. Isto significa “Tu és gentil”.

Outra coisa interessante da língua de São Vicente é a de que podemos brincar com as palavras, ou seja, as frases poderão ser interpretadas de acordo com a nossa maneira de pensar. Por exemplo: “Dá´m el” (Dá-me isso). “Se bô crê mel, u´n ca tem”. (Se queres mel, eu não tenho) “U´n ti ta ba tê casa”. (Eu estou a
ir para casa) “Min n’ ê ave pa batê c´asa.” (Eu não sou ave para bater com as asas). Tcha’m cê got”
(Deixe-me em paz). “U´n ´ca precisâ d´bô got” (Eu não preciso do teu gato), etc., etc…

No que concerne aos verbos regulares, podemos verificar que o “r” final é eliminado e acentuada a
penúltima letra. Por exemplo: “comprâ” (comprar), “brincâ” (brincar); “dirigî” (dirigir), “fazê” (fazer),
“falâ (falar). À semelhança do inglês, os verbos ficam sempre no infinitivo e na terceira pessoa do
singular, para qualquer conjugação. Por exemplo, os verbos comprar e fazer conjugados na primeira
pessoa: u´n comprâ; bô comprâ; ele/ela comprâ; nô comprâ, b´zot comprâ; ês comprâ. (eu compro,
tu compras, ele/ela compra, nós compramos, vós comprais, eles/elas compram); u´n fazê; bô fazê; ele/ela
fazê; nô fazê, b´zot fazê; ês fazê (eu faço, tu fazes, ele/ela faz, nós fazemos, vós fazeis, eles/elas fazem).
Essas conjugações também servem para o pretérito perfeito.

Os verbos: olhar/ver, ir, vir e chorar são escritos da seguinte forma: Oiã (olhar), bai (ir), bêm (vir) e
tchorâ (chorar). De ressaltar que as letras “c” no início dos verbos, têm som de “tch”. Alguns exemplos:
tchorâ (chorar); tchamâ (chamar), tchumbâ (chumbar), tchovê (chover). Por outro lado, podemos dizer
essa consoante têm o mesmo som do inglês. Exemplo: Charlie.

Os pronomes pessoais “crioulos” se diferenciam, completamente, dos do português. Eles são escritos e
pronunciados da seguinte forma: u’n, (eu); bô (tu), el/ela (ele/ela), para o singular; e ‘b’zôt’ (vocês). ês
(eles/elas), para o plural. Relativo aos pronomes ordinários, esses têm uma pronúncia muito parecida à do
português e são escritos da seguinte forma: primer, segund, tercer, quart, quint […]. Como se pode
verificar, é omitida a letra do fim.

O verbo “ir” (bai ou simplesmente “by”, como é escrito em inglês), é conjugado no presente do
indicativo, da seguinte forma: u’n bai, bô bai, el/ela bai, nô bai, b’zot bai, ês bai. Em português: eu vou,
tu vais, ele/ela vai, nós vamos, vós ides, eles/elas vão. Como se verifique, a letra “v” se converte em “b”.
Há de ressaltar que o verbo “ir” (bai), assim como os outros verbos, é sempre mantido no infinitivo. Em
inglês existe apenas uma excepcção: no presente, a forma do verbo muda para os pronomes da terceira
pessoa do singular “he”(ele),”she” (ela) e ”it” (ele, ela ou isso). Exemplo: I´m go, you go, he/she/it goes,
we go, you go, they go.

A negação dos verbos é feita sempre com a palavra “ca” e com o verbo auxiliar sempre no infinitivo.
Exemplo: “u´n ca bai” (eu não fui), “u´n ca comprâ” (eu não comprei), u’n ca put bai (eu não consegui
ir), ca tchorâ (não chore (em)), ca fazê (não faça (s)), etc.

De modo geral, as palavras são escritas e pronunciadas da mesma forma que em português. Alguns
exemplos: estrela, mar, paz, cavala, casa, cultura, mesa, terra, caneta, cão, tesoura, moeda, nota,
recordação, coração, barata, vida, jogador José, João. Assim, relativamente a uma expressão escrita
na língua local, se omitirmos os verbos e os pronomes em particular, o que fica é a restante frase em
português, tal como é escrita e falada em Portugal. Portanto, é a mesma coisa. Conforme se pode verificar
nos exemplos acima, as letras “c” e “j” têm o mesmo som do português, exceptuando-se para os verbos
“chorar” (tchorâ), “jogar” (djâg (bola)). No entanto, os nomes pessoais José e João têm por alcunha
Djosa e Djon. Nestes casos, a letra “j”, à semelhança do verbo jogar referido antes, tem som de “Dj”
(John). Este é um caso particular.

Porém, como acontece em algumas palavras não se pronuncia a letra do fim, porque o som é mudo:
pared(e), cop(o), peix(e), livr(o), chav(e).
À expressão “ti ta”, à semelhança da francesa, “en train de”, é utilizada, quando se quer dar o sentido de
movimento. Por exemplo; “u´n ti tâ bai viajâ” (eu vou viajar), “u´n ti tâ bai comprâ” (eu vou comprar).
“u´n ti tâ bai pâ casa” (estou a ir para casa), etc. Em francês: “Je suis en train de voyager”, “Je suis en
train d´acheter”, “Je suis en train d´aller à la maison”, respectivamente. A forma como são empregados
os verbos, quer na forma afirmativa, quer negativa, é que vai definir os tempos verbais. Exemplo: u’n
tinha bot pa praia. (eu tinha ido à praia), u’n ca tinha bot pa praia. (eu não tinha ido à praia).

Conforme a constatação de palavras na língua falada em São Vicente, é de afirmar que nem todas elas se
começam por “v”. Como por exemplo, “bassoura” (vassoura 1 ), mas isso já não acontece com a palavra
“vaca” (vaca), cuja letra é “v”. No primeiro caso, o “v” tem som de “b”, enquanto que no segundo caso o
som é “v”. De realçar que as letras “lh” por vezes têm som de “dj”. Exemplo: fidj(e) (filho). Para os
outros casos, escreve-se normalmente, tal como em português. Exemplo: orgulho, orvalho.

No que respeita à letra “i” em brasileiro, é de salientar que, quando esta é seguida da vogal “e”, é
eliminada ‘i”, à semelhança do crioulo são-vicentino, ou seja, não como variante do crioulo indígena
como é concebido por tal movimento linguístico. Por exemplo: “manguera” (mangueira), “bananera”
(bananeira), “figuera” (figueira), “foguera” (fogueira), cartera (carteira), bilhetera (bilheteira), etc.

A palavra “de” é escrita e lida tal como em língua portuguesa, ao contrário da ilha de Santiago, em
particular, que, ao invés disso, fala-se e escreve-se “di”, ou seja, se troca o som da vogal “e” por “i”.
Provavelmente, eles têm uma certa dificuldade em pronunciar a letra “e”, quando seguido de “d”.
Exemplo: “liberdade” na língua da ilha de Santiago, é lida “liberdadi”. De ressaltar que em alguns Estados do Brasil, também se pronuncia ‘de” por ‘di”, mas escrevam-no no papel, de forma correcta, “de”.

Também a letra “c”, como é usada no abecedário da língua são-vicentina, escreve-se em Santiago com
“k”, quando devia ser emprego, correctamente, tal letra “c”, em virtude de ter origem na língua latina. Por
exemplo; casa, camisa (Ilha de São Vicente), kasa, kamisa (Ilha de Santiago). O “e” conjuntivo
mantém-se em São Vicente, mas em Santiago, é escrito com ‘i”. Desconhece-se a fundamentação
linguística disso.

De notar que as ilhas de Cabo Verde, de Santo Antão à Brava, falam as suas próprias línguas. No entanto,
as ilhas de Barlavento (São Vicente, Santo Antão, São Nicolau, Sal e Boavista), tirando Santo Luzia, por
habitar, têm uma língua bastante parecida, enquanto as ilhas de Sotavento (Maio, Santiago, Fogo e
Brava), também o sotaque das suas línguas é parecido, devido à mobilidade nelas constante das suas
populações.

É de destacar que Santo Antão tem uma certa influência da língua francesa, como se pode defluir das
palavras pai (pê), mãe (mê), manifestadas através da música de contradança, de origem francesa, o que se
subentende que as tais palavras francesas são de origem romana do que germânica. (…).

Assim sendo, num contexto nacional, não seria assim tão fácil se falar ou se escrever variantes de cada
ilha, constituindo-se em alegada língua materna, crioula, prevista na Constituição, a par da língua portuguesa como oficial, com que não concordamos, com o devido respeito, em virtude de cada ilha ter a
sua língua autónoma. Por outro lado, levaria muito tempo para que Cabo Verde obtivesse uma língua
única, decorrente da mistura delas, ao contrário de alguns países africanos, como Senegal que tem a sua

1 Segundo a norma culta da língua portuguesa “bassoura é uma variante coloquial e antiga, considerada aceitável em alguns dicionários por causa do fenómeno ligústico chamado betacismo”.

língua étnica (uolofe), sem variantes, o que quer dizer que este país poderá ter esta, “franca”, como língua oficial, ao lado da francesa, outrossim.
E mesmo que as ilhas de Cabo Verde fossem autónomas à maneira dos Acores e Madeira, enquanto
regiões autónomas de Portugal, ou independentes, possivelmente, não haveria o interesse em oficializar a
tal língua materna com respectivas variantes, cada ilha disporia da sua língua, derivada do português e de
outras línguas estrangeiras como o inglês e o francês, não obstante a língua falada ou escrita pelos povos
de cada ilha não passa de um português “malfalado”.

Considerando que há linguistas que queiram adoptar a variante do crioulo de Santiago como a língua nacional, o que só será possível, quando a ilha se tornar, possivelmente, independente, face às outras
ilhas, se faz a necessidade de haver um consenso com os antropólogos, em particular, no sentido de
reconhecerem que cada ilha tem as suas características linguísticas e culturais que lhe permitam seguir o
seu caminho.

À semelhança daquilo que foi dito em prol da ilha de São Vicente, pensamos que qualquer cidadão/cidadã poderá dar o seu contributo para o desenvolvimento linguístico próprio da sua ilha.

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