A cultura da festa e a festa da cultura

Nelson Faria

Celebrar a cultura é celebrar a própria identidade, a seiva que nos alimenta enquanto comunidade. A festa da cultura é esse momento salutar de comunhão, onde reconhecemos o nosso património imaterial, as nossas expressões artísticas, as nossas memórias coletivas, a nossa música, a nossa arte como alicerces do que somos. Nesta festa legítima, a cultura revela-se também como um poderoso fator económico e negar esta evidência é fechar os olhos à realidade.

Das artes ao turismo, do artesanato às indústrias criativas, da música ao teatro, a cultura gera sustento, movimenta comunidades e projecta o futuro. Celebrá-la com esta consciência é honrá-la na sua plenitude.

Todavia, distinta e por vezes perversa é a cultura da festa. Aqui, a cultura não é o fim, mas o instrumento. É reduzida a um cenário conveniente, a um adereço esvaziado de significado, utilizado para produzir efeitos efémeros como entretenimento vazio, legitimação política, propaganda ou mero capital simbólico para grupos de interesse. A cultura, neste quadro, é instrumentalizada. A sua profundidade é aplanada, a sua complexidade ignorada, para servir a um espetáculo que pouco tem a ver com a essência que diz celebrar.

Naturalmente, a responsabilidade última de definir prioridades, inclusive as prioridades culturais, cabe à sociedade, através dos decisores que escolhe. É um reflexo coletivo. Se um povo, de forma consciente ou distraída, eleger a cultura da festa em detrimento da festa da cultura, está a fazer uma escolha. Desejo-lhe, então, felicidades no seu circo. Mas que fique ciente de que não poderá depois queixar-se da falta de pão. Pois optou pelo espectáculo imediato em vez de semear o campo que garante o sustento a longo prazo. A metáfora é cruel, mas clara, pão e circo são, historicamente, uma caminhada para a decadência.

A minha forma de pensar e viver não me permite encaixar na cultura da festa. Guia-me, isso sim, uma visão clara de prioridades. Um respeito profundo por todos, especialmente pelos contextos mais difíceis, onde a cultura pode ser, simultaneamente, refúgio e ferramenta de emancipação. Um amor enorme pela verdadeira cultura, que deve sim ser celebrada, mas com a racionalidade e a sobriedade de quem sabe que há vida no amanhã, depois do último acorde da festa.

Celebrar com raízes e com horizontes, eis o desafio. É esta visão que me tem servido pela vida, recusando o espetáculo vazio em nome da sementeira fecunda. Pois a verdadeira festa da cultura não é um intervalo na vida, é a vida mesma, consciente e partilhada, a construir o amanhã.

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