Por Rosário Luz
Os detentores de cargos público precisam ter três ordens de competências: ética, técnica e política. A competência ética é para garantir que o poder será utilizado pelas razões certas. Esta regra não se restringe aos eleitos em democracia; desde a organização do Estado, há normas que regulam o comportamento dos governantes. Se, por um lado, a divindade de um faraó só poderia ser questionada sob pena de morte; por outro lado, os seus deveres económicos, administrativos e rituais para com os seus súbditos também não poderiam ser por ele ignorados – muitas vezes sob pena de rebelião ou morte violenta. O camponês da antiguidade não votava no seu monarca; mas, tal como o eleitor ludibriado do presente, sabia quando este faltava nos seus deveres para com ele e para com a nação.
Porém, lá diz o ditado, de boas intenções está o inferno cheio; portanto, um bom governante não precisa apenas querer fazer o bem, precisa saber fazê-lo.
A segunda ordem de competências necessária à governação refere-se à capacidade de gestão: seja ele príncipe, general ou candidata presidencial, quanto é que a pessoa estudou, trabalhou, lutou, investigou, leu e refletiu no percurso de vida que lhe conduziu ao cargo? As competências técnicas de um líder podem ser formais ou informais; podem ter sido adquiridas na terra ou no mar, em fábricas ou salões, universidades ou campos de batalha; mas devem dotá-lo de um conhecimento prático da sua função; e devem legitimá-lo objetivamente perante o seu universo de governados.
A terceira ordem de competências necessária ao pulitiku é a política: este é o conjunto de qualidades que lhe permitem conquistar o cargo e, posteriormente, mantê-lo. Sem competências estratégicas de liderança, agremiação e comunicação, o aspirante pulitiku não consegue cumprir o percurso corporativo e eleitoral que lhe instituirá na função necessária á implementação da sua visão. No caso dos pulitikus sem ética ou visão, o objeto destas competências é alcançar um posto que lhe permita capturar os recursos do Estado, em benefício próprio e da sua corporação.
O Parlamento.cv tem três bancadas: MpD e PAICV, que pertencem ao arco do poder; e UCID, a única terceira que logrou ocupar de forma contínua o espaço parlamentar. Os eleitores.cv serão confrontados com eleições autárquicas já no próximo ano; e, em 2021, com as legislativas. O imperativo da reconfiguração do espaço pulitiku.cv é gritante; sendo assim, uma análise fria das competências éticas, técnicas e pulitikas da nossa oferta eleitoral é urgente. Na atual conjuntura, qual é a classificação destes três partidos na tabela das “3”?
Em 2001, era eu uma novata no pedaço, disse-me um observador fino da pulitika.cv: “Aqui, as eleições não se ganham; perdem-se. Em 1991, o MpD não ganhou, o PAICV perdeu. Agora também o PAICV não ganhou; foi o que MpD perdeu.” Na minha opinião, há uma verdade genérica nessa afirmação. Nas eleições de 2011, sob intensas pressões internas e externas, o modelo de governação do PAICV já arrebentava pelas costuras – mas a sua imagem não. O partido e, fundamentalmente, do seu líder, continuava a projetar uma imagem sólida e vigorosa, sustentada por narrativas completamente virtuais, mas que apelavam diretamente às fraquezas culturais.cv.
Para além disso, a conjuntura ainda era razoável: o Governo ainda estava relativamente bem financiado pela ajuda externa; ainda tinha a dívida pública domesticada; ainda podia construir elefantes brancos – barragens, estradas, casas para todos – e empacotá-los como a “Agenda de Transformação”; ainda tinha espaço para criar emprego via investimento – e endividamento – do Estado; e ainda tinha meios para investir estrategicamente no seu assistencialismo de marca. Ou seja, apesar de ética e tecnicamente falido, o contexto ainda não era de rotura e a competência política da organização ainda estava riba la. O PAICV ainda não estava em condições de perder, muito menos contra um MpD liderado de remendão por um Carlos Veiga estafado.
O quadro em 2016 era totalmente outro. Com a economia em estagnação, os serviços do Estado em derrocada e um clientelismo partidário rompante, as falências éticas e técnicas da governação evidenciaram-se rapidamente após a vitória de 2011; e as competências pulitikas da liderança eleita em 2014 para ludibriar o contexto não se compararam às do seu antecessor. A VIIIª legislatura terminou numa crise de confiança originada pelas deficiências da governação, que a incompetência pulitika da nova direção agudizou irrecuperavelmente. Resumindo, o PAICV já estava pronto para perder; e, desta vez, o adversário era um Ulisses Silva fresquinho, saído de dois mandatos de sucesso como edil da Capital. Quais foram as competências que lhe sustentaram a vitória? Qual a classificação dos Ventoinhas na tabela das “3”?
Entre 2011 e 2016, enquanto o PAICV dava mostras claras de exaustão, o MpD fez pouco para tirar proveito da situação: para além do desempenho bem sucedido de Silva na CMP, o partido tinha pouco a seu favor: má gestão de várias autarquias sob seu comando, líderes municipais manchados por toda a sorte de acusações, uma cúpula partidária sem carisma, um grupo parlamentar inoperante e uma comunicação institucional deplorável. Ou seja, competências éticas e técnicas comprovadamente medíocres. Mas a campanha reconfigurou as perspetivas eleitorais da organização; e a chave foi o trabalho de imagem.
Tal como a sua adversária, Ulisses Silva não possuía as competências comunicacionais pessoais do seu antecessor. Mas, ao contrário da campanha desajustada e absurdamente ineficaz montada para Janira Almada, o MpD logrou forjar para Silva uma imagem acessível e sincera, completamente sintonizada com as ânsias do eleitorado; o candidato da “Solução”, que brandia a boa gestão da cidade da Praia como credencial. A estratégia optada pelo partido – acertadíssima, a meu ver – relegou um MpD ética e tecnicamente descapitalizado para segundo plano e concentrou-se na construção da imagem pessoal de “Ulisses”, “O homem que iria transformar Cabo Verde”.
Não transformou, obviamente. Ao assumir o Governo, o MpD defrontou-se com o agravamento da conjuntura.cv, contra um minguar dos recursos disponíveis para abordá-la. Se Cabo Verde tinha, de facto, solução, esta dependia diretamente do talento técnico, político e organizacional da nova Maioria – e da seriedade das suas intenções. Mas cedo ficou claro que estas qualidades eram escassas; e sucederam-se rapidamente as questões sobre a honestidade dos candidatos, a legitimidade das suas chefias, e a promiscuidade de interesses entre o Governo e certas cliques empresariais. Agora, passados três anos, a grande questão é a improbabilidade – ou antes, a impossibilidade – do cumprimento das suas promessas eleitorais
Apesar de tudo isso, o grande choque tem sido a inaptidão pulitika demonstrada nestes três anos pela governação do MpD; a sua incapacidade de projetar uma imagem capaz – ao contrário daquilo que foi conseguido pelo PAICV nesta valência, não obstante as progressivas deficiências éticas e técnicas da organização.Apenas um ano após a sua eleição, “o homem que ia transformar Cabo Verde” foi notoriamente substituído em relevância pelo seu vice, Olavo Correia; e um ano mais tarde, só saiu da obscuridade para ser vaiado no palco do Festival da Baía das Gatas – numa ilha que, dois anos antes, tinha-lhe dado uma vitória eleitoral dourada. Como?
É certo que a conjuntura é exigente e que o MpD não possuía, previsivelmente, nem a seriedade nem a visão para a solucionar; mas esta falência acelerada da organização – e da figura de proa das eleições – só é visível para o público por duas razões. A primeira é a que já discutimos: a inaptidão política generalizada do partido e da sua direção, cujo talento comunicacional esgotou-se tragicamente na campanha eleitoral. A segunda é crucial: a má governação do PAICV teve, no seu último mandato, o dom de espicaçar a sociedade civil da sonolência; e a má governação do MpD teve o azar de encontrar a sociedade civil.cv já pré-espicaçada, pronta para contestar.
Quanto á UCID… Ouço muito aqui em São Vicente: “No dá UCID um xanse!” Plausível? Só no abstrato. Recordemos todo o espaço pulitiku criado nas últimas eleições pelo rosário de incompetências dos dois partidos do arco do poder. Como é que a UCID não aproveitou o ensejo para alargar a sua representação – mormente no Norte? Derrotou o PAICV em São Vicente, o que denota alguma capacidade de organização; mas foi incapaz de eleger mais do que uma bancada parlamentar de três. Ficou aquém mesmo das suas modestas ambições, numa região hostilizada pelo poder central, onde já antes das eleições, muitos desconfiavam das promessas do MpD no domínio da Regionalização. Porquê?
Incompetência técnica e política. A primeira é refletida na incapacidade da UCID de desenvolver um discurso acutilante, envolvente – mesmo populista, como foi o do MpD – que articule os anseios da população. A segunda é expressa pela incapacidade da organização de produzir candidaturas à altura das exigências da conjuntura. Para aceder ao espaço pulitiku criado pelo rol de barracas do segundo e do primeiro, o terceiro teria que estar preparado; a UCID teria que estar munida de dois ou três líderes carismátic@s, capazes de mobilizar multidões por toda a nação. Mas não.
A liderança de António Monteiro já deu provas sucessivas das suas limitações; ainda não foi renovada porquê? A raiz do problema não é que Monteiro não larga a cadeira; é que o partido ainda não produziu alguém competente para disputá-la. A permanência de um líder que já foi repetidamente derrotado é evidência de falta de saúde em qualquer organização; é uma demonstração inequívoca do seu baixo nível técnico e pulitiku, via a sua incapacidade de gestão de fracassos e de renovação. Como dar uma chance a quem não tem capacidade de a aproveitar?