Enkostod

Por Rosário Luz

Em Cabo Verde, o impulso de nos encostarmos a quem – ou ao que – achamos que nos pode adiantar as ambições não é um defeito particular; é uma vocação cultural.  Pudera; ao longo de cinco séculos de precariedade económica, aprendemos que a iniciativa pessoal e o trabalho duro simplesmente não compensam. Uma criatura podia labutar uma vida inteira e ser derrotada em apenas um ano de seca; os nossos antepassados mataram-se a trabalhar sem conseguir impedir que os seus filhos morressem de fome.  A única circunstância que salvava um indivíduo da fome era a benevolência de um morgado – e um lugarzinho no seu quintal. O desgraçado do povo cabo-verdiano aprendeu a encostar-se por imperativo histórico.

A partir de 1975, o encosto individual transfigurou-se em estratégia nacional. A princípio, também por imperativo, desta vez político-económico: em 1975, o recurso à ajuda externa era inevitável. Se não fosse a ajuda pública que os primeiros governos.cv souberam angariar de forma providencial não teríamos alcançado melhorias quase imediatas nos sectores da saúde, educação, formação e emprego. O problema foi não evoluir; foi os sucessivos governos do país não se terem dedicado, de forma inteligente e coerente, à formulação de um paradigma produtivo.cv – onde os cabo-verdianos, tal como qualquer adulto independente, se tornariam progressivamente responsáveis pelo seu sustento.

A verdade é que a reformulação da estratégia de financiamento da economia.cv não teria sido fácil. Não é à toa que a economia agrária foi uma tragédia de cinco séculos ou que a Ribeira Grande de Santiago e o Porto Grande do Mindelo foram tão facilmente aniquilados pela concorrência; é evidente que a economia de um território arquipelágico, diminuto, árido e sem qualquer recurso natural para além da sua localização é de difícil promoção.

Portanto, ou o Estado.cv aplicava inteligência, audácia, imaginação e muito trabalho à reformulação do paradigma de financiamento pela ajuda externa ou persistia na filosofia do encosto. O Estado optou pela segunda opção. Num país historicamente configurado para o encosto pessoal, esta estratégia de encosto estatal teve um efeito cultural pernicioso, agravado ainda por outra circunstância: um clubismo partidário tóxico.

No regime de partido único, o clubismo partidário era inerente à natureza do Estado: o não-encosto a um partido que se autodenominava “a força dirigente da sociedade” tinha consequências graves, a mais imediata das quais era o ostracismo económico. Infelizmente, o advento da democracia não nos curou do vício do enkost pessoal ou estatal; isto porque a democratização política não foi acompanhada pela privatização da economia. O Estado continuou a financiar o crescimento com a ajuda externa; e, consequentemente, continuou a dominar o acesso ao emprego e às oportunidades empresariais. Seja em ditadura ou democracia, se o mercado é problemático e é o poder político que gera a maior fatia da riqueza nacional, só singram os profissionais e as empresas que se encostam ao poder político – assim como faziam os nossos antepassados esfomeados ao quintal de um morgado.

Já nos estava no sangue; agora entrou no DNA do Estado, da Administração e do empresariado. O resultado? Uma sociedade inerte, desmoralizada e decadente; porque os seus indivíduos carecem de autoestima; porque não se acham capazes de suceder pelo seu esforço e pela sua criatividade; porque, martirizados por cinco séculos de incerteza, acreditam que só poderão sobreviver protegidos por um morgado – e calam-se em troca de um cantinho no seu quintal. Obviamente, um poder político assim empoderado age como um morgado; não chicoteia como chicoteavam os senhores de escravos, mas exige submissão; exige colaboração; exige, no mínimo, a omissão do cidadão.

Ultrapassar o enkost a nível cultural exige a compreensão do impulso em toda a sua complexidade. Não é apenas a insegurança, nascida da carência, que nos comanda; há que considerar a componente simbólica do impulso. Imaginemos alguém que nasceu na década de 1970 – uma época em que a posse de um automóvel era privilégio de uma minoria reduzidíssima de cabo-verdianos. Imaginemos que os seus progenitores nunca teriam cogitado a hipótese de possuir um carro. Imaginemos que essa pessoa é um aluno dedicado,  licencia-se e entra, como técnico superior, para uma repartição qualquer do Estado. Imaginemos que, ao final de pouco tempo, consegue comprar um carro; ou, melhor ainda, a repartição põe-lhe um carro de serviço à disposição. Como é que essa pessoa se sente? Qual é a percepção do seu sucesso quando visita o bairro onde cresceu ou a ribeira dos seus avós?

Para esse crioulo, um carro é muito mais do que um meio de transporte; é evidência de um percurso nacional cumprido com sucesso – entre avós camponeses, pais remediados e filhos com carro. Quando este percurso é fomentado pelas pressões consumistas de uma sociedade globalizada, não ter carro põe ao profissional.cv problemas muito mais profundos do que a renúncia de um conforto; põe-lhe problemas a nível de construção identitária e de projeção social. A gratificação que lhe é ofertada por um enorme Jeep reluzente é muito mais do que material; ela é simbólica.  E se a única forma de aceder a essa realização é encostado ao quintal de um morgado partidário, então que assim seja. Outra consequência nefasta da história do enkost.cv é a forma como o Cabo-verdiano conceptualiza o exercício do poder.

Em democracia, o poder não é exercido por indivíduos, mas por instituições; as candidaturas individuais a cargos públicos são entendidas no sentido de selecionar a melhor competência para coordenar o exercício do poder institucional. Mas, em 500 anos de História, o Cabo-verdiano não lidou com instituições estatais; não usufruiu de serviços de saúde ou previdência social, segurança pública ou justiça; e, fundamentalmente, não era empregado pelo Estado. O Estado institucional era uma entidade remota, intangível para a maioria; o poder real – económico, executivo, operacional – era exercido pelo morgado e pelos seus capachos.

Ou seja, o poder era concebido como uma prerrogativa pessoal; uma atribuição exclusiva de quem detinha a posse da terra e, portanto, o poder de empregar, alimentar, decidir, ou julgar. No pós-Independência, o Estado deixou de ser uma entidade remota; e expandiu-se legitimamente, para garantir ao cidadão, anteriormente abandonado pelo poder colonial, os serviços de saúde, educação e previdência social de que ele carecia.

Mas, como sabemos, ao longo do processo herdou do morgado a quase totalidade do poder de empregar, alimentar, decidir e julgar. E com esta herança, a concepção do poder como uma prerrogativa exclusiva da clique que governa, num determinado momento, os recursos do Estado. A passividade do nosso cidadão contemporâneo não resulta apenas da necessidade prática e simbólica de se encostar; resulta da sua formatação psicológica para a apatia; porque cinco séculos de História ensinaram-lhe que o poder é algo que ele não pode compartilhar. Em três décadas de democracia, a nossa concepção anacrónica do exercício do poder não sofreu a transformação necessária e constitui um dos principais obstáculos à modernização política e social da República.

Que fazer? Quem muda o curso da História são coletivos de indivíduos; ou seja, para que a História mude, o pensamento individual tem que mudar. Em primeiro lugar, o indivíduo tem que estar consciente da possibilidade de mudança; depois, tem que aceitar os desafios pessoais que o processo implica – nomeadamente, a angústia social e identitária de não se deslocar ao seu bairro de infância num enorme Jeep reluzente. Como conseguir esta transformação da cabeça do Cabo-verdiano?

Introspeção e terapia; coletiva e individual. Quando o problema é do foro da psicologia clínica, o doente consciente faz um esforço para se curar. Esforça-se por identificar – com ajuda profissional, se necessário – os traumas que o afligem e que engendraram o desvio comportamental. Depois aplica-se na  alteração dos comportamentos que lhe atrasam a existência. O conceito vale também para uma população historicamente traumatizada: temos que nos tratar. Com um esforço consciente de elucidação a nível coletivo – e de introspeção, a nível individual.

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