“Esquerdino” Jôn d’Júlia, ex-atleta do Castilho: “Sou conhecido graças ao futebol”

Era temido no campo por causa da potência do seu remate com o pé esquerdo. No entanto, Jôn d’Júlia, 64 anos, tornou-se esquerdino por acidente: sofreu uma forte pancada na perna direita e passou a jogar com a esquerda. Futebolista polivalente, encarava qualquer sector, mas era como meio-campo e avançado que provocava danos nas equipas adversárias. Durante 14 anos envergou a camisola do Castilho, seu clube do coração. Confessa que nunca gostou das equipas de cor vermelha, muito por causa do “fanatismo” dos adeptos do Mindelense e do Benfica. No entanto, chegou a acompanhar os “leões vermelhos” numa digressão a Angola e São Tomé sob o comando de Txida d’Mindelense. Esteve também uma época na Académica do Mindelo, mas regressou logo para o Castilho, onde terminou a sua carreira aos 29 anos. Devido a um problema de saúde, esse senhor do futebol já não pratica nenhum desporto, mas continua a ir ao estádio Adérito Sena ver a nova geração trocar a bola.

Por Kim-Zé Brito 

Mindelinsite – Jôn d’Júlia é um nome sonante em S. Vicente muito por causa do futebol. Mas, em primeiro lugar, gostaria de saber onde nasceu e passou a tua infância?

Jôn d’Júlia – Nasci na zona de Chã d’Cemitério, onde passei a minha infância, educado pelos meus pais. Frequentei o ensino primário na escola de Chã d’Cemitério, perto de Fonçona, e sempre que possível ia jogar futebol com os meus amigos.

MI – Nesse tempo, aquilo que não faltava a S. Vicente eram campos de terra. Acha que isso ajudou-te a desenvolver o teu futebol?

JJ – Tínhamos espaços a vontade para brincarmos e jogarmos à bola e isso dava-nos a possibilidade de treinarmos, mas sem termos essa noção. Comecei a dar os primeiros chutes nas bolas de meia que fabricávamos, depois passei para as bolas de ténis. Mais tarde apareceu a famosa bola de cauchu.

MI – Futebol foi sempre o teu desporto preferido?

JJ – Sim porque isso faz parte da família. O meu falecido irmão Tova era tido como um excelente futebolista e foi uma das minhas inspirações. Ele jogou no Castilho antes de emigrar para Portugal, onde faleceu. Ele treinou no Benfica, mas, como não gostava da cor da camisola, foi para o Oriental. Ele nunca gostou das equipas de cor vermelha.

MI – Você também herdou essa “mania”?

JJ – Acho que sim, porque não gosto do vermelho.

MI – Porquê essa aversão ao vermelho?

JJ – Em termos futebolísticos não tenho nada contra os clubes de cor vermelha, mas os seus adeptos são muito ferrenhos e têm comportamentos que reprovo. É fanatismo a mais.

MI – Está a referir-se aos adeptos do Mindelense e do Benfica?

JJ – Exactamente, falo deles e com sinceridade.

MI – Isto explica por que gosta mais do azul?

JJ – Sim, adoro o azul, mas o azul do Castilho. Por isso fiz questão de vestir esta camisola para esta entrevista, porque sabia que iria certamente fazer-me esta pergunta.

MI – Posso concluir que é adepto do Porto?

JJ – Não, sou adepto do Belenense. Gosto do azul e para mim Porto não é azul, é azul de risca branca.

MI – É por causa da cor que acabou por jogar pelo Castilho?

JJ – Nem por isso, como o meu irmão jogava pelo Castilho, e o acompanhava nos jogos no Campo Novo, acabei por ganhar amor pelo clube.

De apanha-bolas de ténis a futebolista do Castilho

 MI – Com que idade começou a frequentar o clube Castilho?

JJ – Desde criança, porque eu era apanha-bolas no campo de ténis do Castilho. Fazia isso depois das aulas. Fui crescendo, e como viram que eu tinha jeito para o futebol, deram-me um par de botas e fui treinar. Gostaram e pediram-me para assinar ficha.

MI – Chegou a jogar ténis antes do futebol?

JJ – Não, porque os mais velhos não nos deixavam pegar nas raquetes. Jogávamos com ramos de tamareira.

MI – Tinha alguma paixão pelo ténis?

JJ – A minha preferência sempre foi o futebol. Ia para o court de ténis mais com a intenção de ganhar aquele 2$50 que nos ofereciam.

MI – Sonhava vestir a camisola do Castilho no campo da Fontinha?

JJ – Como o meu irmão era jogador do Castilho e eu via nele um exemplo queria também fazer parte do plantel. Ele era meu ídolo e de uma data de miúdos.

MI – Quando assinou a ficha entrou logo para a equipa principal do Castilho?

JJ – Estive primeiro na reserva, marquei 17 golos no primeiro ano e fui considerado o melhor marcador do campeonato. O Idino Évora dava-me 10 escudos por cada golo. Na época seguinte recebi convite para integrar a equipa de honra. Logo nesse ano fui campeão de S. Vicente pelo Castilho.

 Um jogador polivalente

 MI- Qual era a tua principal característica?

JJ – Era a potência do meu remate, mas também construía jogadas. Eu era polivalente, jogava em qualquer posição, mas era fundamentalmente um atirador.

MI – Mas jogou também no sector defensivo.

JJ – Raramente jogava na defesa. Houve, no entanto, um jogo em que colocaram o nosso defesa-central na rua e tive que ocupar essa zona. Estávamos a jogar contra o Mindelense, nesse encontro desci e marquei um golo de cabeça, mas o Mindelense deu a volta ao resultado.

MI – Usava e abusava da sua altura?

JJ – Claro, era uma vantagem que eu tinha e, se não fizesse isso, era levado à melhor.

MI – Tinha colegas com quem fazia boas combinações?

JJ – Sim, por exemplo, com o Noni, Liz Canela, um grande defesa-central, o Tidô e outros mais que não me lembro neste momento.

MI – Quem era o teu treinador?

JJ – Passei pelas mãos de vários treinadores, não posso eleger um em especial sob pena de ferir susceptibilidades.

Jogar por amor à camisola

MI – Quando jogava no Castilho, qual era o nível do futebol em S. Vicente?

JJ – Nesse tempo jogávamos por amor à camisola, aquela vontade natural de jogar, aquele orgulho em ganhar, mas sem pensar em recompensa. Por conta disso havia muita paixão. Hoje o futebol é mais táctico, mais evoluído. No nosso tempo não tínhamos táctica, inventávamos um 4-3-3 e cada um fazia o seu melhor.

Havia mais emoção antigamente?

JJ – Sim, por causa desse amor à camisola, e havia mais público no campo. Hoje as pessoas têm o privilégio de acompanhar os jogos pela TV; por seu lado, os jogadores podem ver vídeos educativos na net e melhorar a sua técnica. Coisa que não tínhamos.

MI – Se no teu tempo tivessem acesso a tanta informação seriam melhores?

JJ – Sem dúvida, se eu tivesse acesso à televisão como agora seria mais evoluído. Repare que mesmo nessa época alguns jogadores foram para Portugal e engrenaram-se sem problemas.

MI – Pois, é o caso de Pedras, um nome que ficou na história do futebol de S. Vicente. Mas ainda há jogadores cujas famas resistiram à passagem do tempo, como Cadino, Djobla, Mané Djodje, Baessa…

JJ – … podemos acrescentar Bernolde, Almara, Bitino, Armandim, Vave, Gabs, Berona, Faba, enfim muitos talentos.

MI – Nessa altura S. Vicente tinha uma selecção extraordinária.

JJ – Tão extraordinária que os treinadores tinham dificuldades em convocar os jogadores. Era impossível um treinador fazer uma selecção sem ficar em dúvida quem era o melhor para cada posição porque havia um manancial grande de excelentes futebolistas.

MI – Teve a sorte de ser convocado?

JJ – Quando fui convocado pela primeira vez tinha 19 anos, já tinha passado pela reserva e honra do Castilho. Graças ao meu trabalho, e a fase crescente em que estava, fui escolhido. Nessa altura não havia muitos jogos da selecção, costumávamos falar de Misto. Nós chegamos a ganhar um misto de Cabo Verde.

MI – Havia algum jogador por quem tinha o máximo de respeito?

JJ – Havia alguns que me criavam problemas no campo, como por exemplo Jôn d’Lola, um jogador polivalente do Mindelense; mas não posso esquecer o temível defensor Manê Djodje, Vave, Pedras, Bana, Calú Pitão e outros que marcaram a minha época. Outro jogador excelente e que impunha respeito era o Djobla, um defensor que estava sempre em cima dos lances. Uma vez ou outra eu conseguia passar pelo buraco e marcar.

 Esquerdino por acidente

MI – Por falar no Djobla, lembra-me que são dois esquerdinos. O facto de jogar com o pé esquerdo dava-te alguma vantagem no campo?

JJ – Na verdade, eu não era esquerdino. Acontece que apanhei uma forte pancada na perna direita quando era garoto e passei a jogar com a perna esquerda, tanta era a minha vontade de jogar. Desenvolvi de tal forma a minha técnica que muita gente pensa que sou esquerdino por natureza.

MI – Conseguiu fazer essa transformação sozinho, sem o apoio de nenhum treinador?

JJ – Eu era criança, ainda não era jogador federado. Hoje é o meu melhor pé. Diria que foi um mal que veio para o bem. Sempre tirei proveito do facto de jogar tão bem com o pé esquerdo porque não há muitos esquerdinos.

MI – E como era o teu pé direito?

JJ – Eu jogava com os dois pés, inclusive marquei um golo com a perna direita contra o misto de Portugal, mas perdemos por 5 a 1.

MI – Jogou exclusivamente no Castilho?

JJ – Passei 14 anos no Castilho e uma época na Académica. Vou aproveitar para explicar isso porque muita gente do Castilho ficou irritada comigo. Eu sou Castilho, mas fui para a Académica porque o clube arranjou-me um emprego melhor do que aquele que tinha no hospital. Passei apenas um ano na Académica, regressei ao Castilho e voltei a conquistar as velhas amizades. Nunca mais sai do Castilho.

MI – Até que idade esteve no Castilho?

JJ – Até os 29 anos, era para continuar, mas tive que parar para dar atenção à minha família. Depois passei a jogar futebol de cinco nos polivalentes. Eu não era brincadeira também. Joguei pela equipa da Shell e marcava muitos golos. Depois enveredei-me pelo ténis aos 33 anos de idade.

MI – O que o levou a experimentar o ténis?

JJ – Queria estar ocupado, mas depois tive um problema de saúde e fui obrigado a parar com tudo.

MI – Neste momento não pratica nenhuma actividade desportiva?

JJ – Nada porque fui operado num dos pés, cortaram-me dois dedos e não tenho muito equilíbrio. Mas continuo a ser um adepto do desporto.

MI – Aliás continua a ir frequentemente ao estádio Adérito Sena.

JJ – Sim vou porque fui alvo de uma homenagem pela associação de futebol de S. Vicente e deram-me um cartão de entrada livre vitalício. Aproveito para agradecer esse gesto e também a todos aqueles que foram assistir ao jogo de homenagem.

“Reforço” do Mindelense

MI – Como se sente ao ver o pessoal hoje a jogar na relva, coisa que não havia no teu tempo?

JJ – Jogar na relva é uma maravilha. Quando fui com o Mindelense para Angola…

MI – … Como assim?????

JJ – … não queria abordar este assunto, mas pronto. Acompanhei o Mindelense num torneio realizado em Angola.

MI – Mas, explica-me, como foi parar ao Mindelense e vestir a camisola vermelha?

JJ – Acontece que o Mindelense ia fazer essa digressão e precisava reforçar o plantel. Por isso, o treinador Tchida convidou o Armandim, Calú Pitão, eu e o Ducha para integrarmos a equipa. Eu fui mais com o intuito de defender a imagem de Cabo Verde. O Ducha jogava na altura pelo Castilho e foi para o Mindelense quando regressamos. Fomos também para São Tomé, jogamos duas partidas, ganhamos uma e perdemos a outra.

MI – Está explicado. Qual a importância que atribui ao futebol na tua vida?

JJ – Se não fosse o futebol eu não seria conhecido. Se hoje tenho tantos amigos é graças ao futebol.

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